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sexta-feira, abril 29, 2005

Um minuto, por favor 

Juntem-se pequenos pedacinhos de coisas retiradas do que está á nossa volta. Por vezes não damos conta do que nos rodeia, passamos tempos imensos, muito mais que horas, absorvidos numa rotina, à procura de realizar um objectivo, por vezes seria saudável parar para pensar.
Tristemente aprendi o valor disto já tarde, quando já não seria possível criar em mim esse hábito. Talvez numa altura em que já funciono, em todos os sentidos, de uma forma tão mecanizada e particular, também tão imperfeita. Seremos todos assim no entanto, cabe-nos então tomar consciência do que nos falha. Será? É assim tão importante saber o quão limitados somos, quando se não o soubermos nunca poderemos admitir ter tais fraquezas. É como o indivíduo que desconhece ter a doença incurável que o vai matar. Ao desconhecer esse facto ele vai continuar a sua vida feliz ou infeliz, mas terá menos uma coisa com que se preocupar. Por outro lado, saber que vai morrer dentro em breve pode transformar os próximos dias do homem que vai então fazer o que sempre quis, aproveitar o tempo que lhe resta.
É então mais uma questão de como se encaram as coisas em vez de ter conhecimento delas. Já que conhece-las é inevitável, agora ou na hora da nossa “morte”. Teremos a chamada “morte do artista”. Quem sabe olhar para si, para os outros, para tudo está, concerteza, um pouco mais desalentado com as irregularidades comuns ao ser humano. A resignação é um caminho, mas o que digo é que é essencial desenhar-se um caminho alternativo, ter consciência das coisas é o primeiro passo, saber viver com elas é o segundo, colmatá-las é para predestinados.

segunda-feira, abril 04, 2005

A missa 

Este Domingo nasceu solarengo, contrastando com os últimos dois dias. Ainda na cama, José não consegue evitar ouvir o sonoro ruído projectado do apartamento em frente. Amigos de longa data José e Fonseca, seu vizinho da frente, já haviam partilhado muitas histórias. O concerto de Rammstein em Berlim, ao qual assistiram há três anos, era agora o tema de pensamento de José enquanto estava deitado na cama, meio a sonhar, meio a ouvir o Asche Zu Asche que ecoava do andar do Fonseca pelo prédio inteiro.
- Baixa essa merda! – Gritou José da porta do seu andar, descalço e em boxers.

O som rapidamente desvaneceu. À porta surgiu Fonseca com o Record na mão:
- Então dred, parece que já não curtes o som! Parece que ainda foi ontem que lá andávamos no meio daquele people todo a curtir a cena. No meio daquelas alemoas góticas muita boas...
- Ó Fonseca vai cagar. Foda-se, achas que são horas para teres o som nessa altura?! Quem é que ganhou ontem?
- Quem achas?
- Caralho, já lá não vamos este ano outra vez... Bem, vou-me despachar. Vens?
- Estás louco ó quê? Achas?
- Tá-se bem. Até logo.

José apressou-se, tomou o seu duche e o pequeno almoço, vestiu-se e saiu em direcção à igreja de Nossa Senhora, uns quatrocentos metros rua abaixo. Desde miúdo que frequenta aquele sítio. Todos os Domingos lá vai à missa, não reza, não canta e não comunga. Todas as semanas as mesmas caras á excepção de uma ou outra, igualmente desinteressante. O mesmo grupo de escuteiros que canta sempre as mesmas músicas, que ainda que sejam diferentes parecem todas iguais. Todas as semanas os mesmos olhares de reprovação, os mesmos mexericos, os mesmos comentários que José não ouve mas pressente. No entanto ele sempre lá foi, nunca faltou um domingo, excepto aquele que sucedeu o concerto de Rammstein num Sábado, em Berlim.
Hoje José olhou em volta antes de entrar na igreja. Havia muita gente na Rua, poucas caras desconhecidas poucos olhares fixados nele que ele já não tivesse visto antes, excepto um. Esse era diferente, era um olhar que não o incomodava, não lhe fazia pressentir repreensão. Não era um olhar que concluía que o seu longo cabelo e as tatuagens que apresentava nos antebraços significavam inegavelmente tratar-se de um toxicodependente. José sentiu-se confortável e especou naquele olhar durante vários segundos, até que todos começaram a entrar.
A eucaristia começa, José sente-se bem, inesperadamente bem, como nunca antes. Está sentado num banco, no mesmo de sempre, ao seu lado, contudo, algo mudou. A dona Celestina da mercearia não é, desta vez, a simpática camarada do lado. À sua direita está uma jovem com longos cabelos negros, condizentes com a sua indumentária, a sua maquilhagem, a pintura nas sua unhas. A cabeça baixa faz com que os negros cabelos impeçam José de vislumbrar a face da jovem.
À medida que a missa decorre a rapariga não muda de posição, não reza, não canta e não comunga. O tempo todo esteve ao lado de José com o qual formou uma única forma subversiva de encarar o ritual, o mesmo que todos os outros naquele local. No fim saem lado a lado, agora José consegue observar a beleza do rosto, mas é o olhar que parece comunicar com ele. Quando chegam à rua ela olha-o nos olhos, ele ficou paralisado, aquele momento preencheu-o de alguma forma, um contacto imediato foi estabelecido:
- Toda a gente vem aqui em busca da perfeição. - Disse a rapariga enquanto se olhavam inseparavelmente. E continuou:
- Aqueles vêm em busca de Deus, que é perfeito. Mas Deus não existe.
- Então porque cá vens? – Perguntou José sem conseguir desligar-se dos olhos da rapariga.
- Não sei. Tu sabes porque cá vens?
- Não.
- De alguma forma sempre senti que era aqui que encontrava a perfeição, a felicidade. O facto de ter a certeza que Deus não existe, nunca me pareceu uma razão lógica para não vir. – Afirmou ela sorrindo.
- Como te chamas?
- Maria. Tu?
- José. Vais voltar cá?
- Não, já não é preciso. Não achas?

José sorriu, deu-lhe a mão e seguiram os dois rua acima olhando-se nos olhos preenchidos pela perfeição.

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